Apreensões revelam esquema organizado de envio de lixo doméstico e hospitalar dos Estados Unidos e da Europa para o Brasil
O Brasil entrou na mira dos mercadores de lixo ilegal e se transformou em destino de resíduos dos Estados Unidos e de países da Europa. É um esquema criminoso que movimenta milhares de toneladas de lixo doméstico, industrial e hospitalar ilegalmente entre continentes e envolve grupos especializados nesse tipo de negócio.
Nos últimos dez anos, o Ibama registrou 106 apreensões, segundo levantamento inédito feito com base na Lei de Acesso à Informação. Foram pelo menos 4.500 toneladas apreendidas de todo tipo de lixo ilegalmente enviado ao Brasil. Isso é apenas uma pequena parte daquilo que foi identificado e apreendido pelo Ibama e pela Receita Federal.
A movimentação de resíduos entre países é regulada pela Convenção de Basileia, que está em vigor desde 1992 e proíbe, entre outras coisas, o envio de lixo doméstico, mesmo os recicláveis, entre países.
Quadrilhas importam toneladas de lixo para o Brasil
Um dos eventos que levaram à criação da Convenção de Basileia foi o envio de 8.000 barris de lixo tóxico da Itália para Koko, vilarejo de pescadores na Nigéria, em 1988. Empresários italianos alugaram um terreno por 100 dólares ao mês e despacharam o lixo para o país africano. No fim, o vilarejo de 5.000 habitantes teve que ser evacuado por causa do lixo, que foi devolvido à Itália.
É um esquema que persiste no continente africano. Hellen Kahaso Dena, do Greenpeace Africa, disse que o problema continua e cita a situação no Quênia, onde está baseada. Ela explica que milhares de toneladas de lixo, sobretudo roupas sintéticas usadas, são enviadas anualmente da Europa para o país, o que acarreta um problema ambiental e de saúde para a população.
Da Itália para o Brasil
Uma empresária, que não se identificou por temer represálias e por já ter recebido ameaças, disse que há um plano para trazer 600 mil toneladas de lixo da Itália para o Brasil. Ela afirma que é lixo doméstico disfarçado em cargas de lixo reciclável. O esquema envolveria empresas brasileiras e italianas.
Se concretizado o plano, o volume de lixo importado será 133 vezes maior que todo o lixo ilegal já apreendido no Brasil. É equivalente ao que a cidade de São Paulo, a mais populosa do país, produz de lixo em um mês.
Documentos mostram que o lixo viria de diversas regiões da Itália, incluindo o maior lixão da Europa, o de Malagrotta, que recebe todo o lixo doméstico de Roma e já foi interditado. A empresa dona do aterro de Malagrotta é a E Giovi. Ela aparece como uma das produtoras do lixo que será enviado ao Brasil.
Documento obtido pela reportagem mostra que o destino será o Ecoparque que fica em Igarassu e é o maior aterro de Pernambuco. A empresa disse que não recebeu nenhuma remessa de lixo da Itália.
Os envolvidos no negócio chegaram a enviar a documentação ao Ibama para conseguir a autorização, que foi negada. Porém, segundo a denunciante, eles ainda estariam tentando liberar a importação.
Na documentação, consta que a empresa italiana responsável pelo envio do lixo, a Difesa Ambiente, atua na área de reciclagem e é dona de uma área no porto de Piombino, na região da Toscana. Há registros de que essa empresa envie resíduos para a África.
Segundo a denunciante, as “importadoras” iriam receber pagamento pelo lixo enviado da Itália para o Brasil. Ela afirma que seria uma importação simulada, que as empresas na verdade receberiam pagamento para recepcionar o lixo no Brasil.
Para o produtor do lixo, é um bom negócio. Na Europa, o custo médio da destinação do lixo doméstico é de 300 euros por tonelada. Já o custo para a destinação do lixo hospitalar é de 1.300 euros por tonelada. A denunciante diz que a operação total até a entrega no Brasil sairia por 100 euros a tonelada.
A empresa Ambiental Reciclagem foi quem entrou com o pedido no Ibama. Nos documentos enviados ao órgão, consta um contrato com a previsão de importação de 600 mil toneladas de resíduos.
A Ambiental fica no fim de uma rua repleta de empresas de reciclagem em Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife, em Pernambuco. No terreno, com a identificação da empresa, encontramos três pessoas simples trabalhando na separação de resíduos. Elas nos indicaram o prédio vizinho como sede da Ambiental.
Fomos até o local; lá, um homem disse que a empresa não era mais a Ambiental e que o sócio Edivaldo Félix da Silva não tinha nenhuma relação com o negócio. Edivaldo é quem assina o contrato com a empresa italiana.
Entramos em contato por telefone. Ele disse que era dono da empresa, admitiu a importação, mas assegurou que não era lixo, mas resíduos, e que não chegou a concretizar a importação. Ele insistiu que o lixo não foi enviado e lamentou a negativa do Ibama para a operação. Disse que era um ótimo negócio e chegou a viajar para a Itália.
Procuramos a Difesa Ambiente, que enviou nota assinada por Lorenzo Dantino. Ele afirma que está há mais de 30 anos no setor, admite que tinha um convênio com a Ambiental Reciclagem para a exportação do lixo da Itália, mas nega que fosse lixo. Ele afirmou que eram resíduos, cuja exportação seria permitida, mas que, segundo ele, infelizmente havia sido barrada pelo Ibama. À pergunta por que razão escolheu o Brasil como destino do lixo italiano, Dantino disse que era apenas uma questão de negócio.
Lixo hospitalar
Durante a nossa apuração, notamos que o esquema de envio de lixo ilegal para o Brasil segue um padrão, verificado nas apreensões recentes. Uma empresa de lixo reciclável de outro país despacha contêineres de navio para o Brasil como se fossem de aparas de papel ou plástico.
O destinatário costuma também ser uma empresa de lixo reciclável no país. Em meio ao material vem lixo doméstico ou, mais grave ainda, lixo hospitalar.
A Receita Federal realizou duas apreensões de lixo hospitalar no porto de Suape, em Ipojuca, a cerca de 50 quilômetros do Recife. A apreensão mais recente aconteceu em fevereiro. A outra ocorreu há dois anos, em meio ao pico da pandemia do coronavírus.
Carlos Eduardo Oliveira, delegado da Receita Federal no Recife, disse que nas duas apreensões as cargas foram vistoriadas por causa da análise de risco. “A Anvisa constatou que era lixo hospitalar. Veio de Portugal tanto em 2021 como em 2023. Os destinatários eram empresas diferentes”, explica.
Apuramos que nas duas apreensões o lixo foi despachado pela empresa Razão dimensão Energias Alternativas, de Ovar, pequena cidade na região de Aveiro, em Portugal.
Em 2021, a carga foi embarcada no porto de Barcelona com destino à empresa AR Reciclagem de Materiais Plásticos. Quando o contêiner chegou ao Brasil, fiscais da Receita Federal, Ibama e Anvisa encontraram nele uma carga de lixo hospitalar — bolsas plásticas de sangue e hemodiálise, luvas, cânulas e mangueiras de plástico usadas.
Brasil vira destino de lixo clandestino de outros países
O responsável pela empresa disse à Polícia Federal que foi a primeira importação que fez com a Razãodimensão e que havia importado material para fazer sandálias de plástico. Em nota, o dono da AR disse que não tinha responsabilidade sobre o lixo hospitalar enviado de Portugal.
Um homem que trabalhou nessa empresa conta uma história diferente. Ele afirma que, antes da pandemia — portanto, antes dessa apreensão de 2021 —, havia encontrado bisturis, tesouras e seringas usadas em meio ao lixo que chegava em caminhões à empresa. Ele era orientado a separar o material em um recipiente, que depois era recolhido e levado para descarte.
Em fevereiro, a Receita Federal apreendeu um contêiner com 14,8 toneladas de lixo hospitalar que saiu do porto de Leixões, em Portugal. Foram apreendidos equipos (dispositivos utilizados para administrar medicações endovenosas), mangueiras e bolsas para sangue, entre outros objetos.
Lixo hospitalar veio triturado em 2023 DIVULGAÇÃO/RECEITA FEDERAL
O coordenador de Portos, Aeroportos e Recintos Alfandegados da Anvisa em Pernambuco, Olimar Cardoso dos Santos, disse que o lixo estava triturado, diferentemente daquele apreendido em 2021. A suspeita é que tenha sido uma tentativa de camuflar o material, mas foram achados restos de seringas, cateteres, acessos que caracterizavam o lixo hospitalar.
“Eram produtos hospitalares usados. O resíduo hospitalar por si só é considerado um resíduo perigoso. Porque é um perigo para o meio ambiente e para as pessoas. É um resíduo que pode transmitir doenças”, explica.
A Polícia Federal fez a perícia e instaurou inquérito. A carga foi importada pela empresa BL Indústria e Comércio, de Jaboatão dos Guararapes.
Procuramos a empresa, mas o gerente ligou para o dono e disse que estávamos querendo informações sobre a “situação do contêiner”. Depois disso, ele nos levou para fora da empresa sem falar nada. Nem quis passar telefone do dono ou de advogados.
Lisânia Rocha Pedrosa, superintendente do Ibama em Pernambuco, disse que há um grave risco ambiental envolvido na importação de lixo hospitalar e nas duas apreensões e informou que os envolvidos foram autuados, e a carga, devolvida aos países de origem.
“No caso de produtos com contaminantes biológicos, que é o caso de lixo hospitalar, com perfurantes e cortantes, você tem problema de destinação. Alguém vai processar isso, e qualquer resíduo vai ter que ser destinado. Em última análise, vai aumentar a destinação de produtos em aterros sanitários brasileiros”, alerta.
Para Márcio Tenório Wanderley, delegado regional de Polícia Judiciária, os traficantes de lixo podem estar aproveitando as rotas dos traficantes de drogas, só que em sentido inverso, da Europa para o Brasil, já que os portos de onde foram despachadas as cargas de lixo hospitalar costumam ser destino de cargas de cocaína enviadas do Brasil.
“De alguma forma o Brasil está sendo visto como destino para esse tipo de material. É possível ver uma logística reversa do tráfico de drogas. Pode existir uma rede de criminosos especializada na remessa desse tipo de material para o país”, analisa.
O português Fernando Carvalho, dono da Razãodimensão, negou que tenha enviado lixo hospitalar para o Brasil. Ele disse que era material descartado da indústria, que o contêiner não poderia ter sido aberto pela Receita Federal e que a investigação é uma fraude. Disse que não vai mais exportar nada para o Brasil.
Dos Estados Unidos para o Brasil
As grandes apreensões de lixo importado ilegalmente para o Brasil guardam semelhanças quando se trata de identificar os responsáveis e tornar público o nome deles. Verificamos com fontes no Ibama que há uma norma que restringe a divulgação do nome das empresas e dos responsáveis até que os processos sejam concluídos. Durante a nossa apuração, procuramos identificar os responsáveis por importar e quais foram as empresas que enviaram o lixo para o Brasil.
Em 16 de abril de 2020, a Alfândega do Porto do Rio Grande, no Rio Grande do Sul, apreendeu 65 contêineres despachados do porto de Everglades, na Flórida, com cerca de 1.100 toneladas de lixo. Oficialmente, o material importado havia sido declarado como aparas de papelão para produzir caixas de embalagens para alimentos.
Os fiscais descobriram que era lixo que havia sido recolhido em shoppings, escolas, supermercados e hospitais de diversos estados da costa leste dos Estados Unidos. O material foi despachado de volta.
Cristiano de Sousa Demboski, delegado da Alfândega no Porto do Rio Grande, explicou que suspeitaram que armas estivessem escondidas na carga, por causa da imagem do escâner. Quando abriram o contêiner, porém, foram surpreendidos com o lixo.
“Era uma carga com origem nos Estados Unidos declarada como aparas de papel. Quando passou no raio-X, nosso pessoal verificou que poderia ter uma suspeita de armas de fogo. Quando foi feita verificação física, descartaram essa hipótese, mas verificaram que a carga estava contaminada e tinha material reciclado e até mesmo lixo hospitalar”, explica.
O auditor fiscal Douglas Roberto Walkbring diz que foram encontrados lixo hospitalar, luvas, máscaras e restos de comida. “Verificamos que se tratava de material de coleta seletiva. Encontramos resíduos de embalagens de alimentos, material hospitalar, luvas, seringas, máscaras, madeira, restos de móveis, roupas, alguns itens de higiene pessoal, pneus de veículo, embalagens de produtos usados em restaurante, óleo de cozinha”, relembra.
Ele explica que no interior dos contêineres foram encontrados fardos de papelão prensados.
“À primeira vista, tinha muita umidade, fermentação de matéria orgânica, e por fora tinha embalagens de alimento, latas de refrigerante, garrafas PET. Tinha restos de alimentos em decomposição. Ossos de frango com larvas, insetos, aranhas, baratas, formigas, tudo indicando que naquela carga havia matéria orgânica”, descreve.
Segundo Walkbring, as embalagens mostraram a possível origem do lixo. “Identificamos algumas cidades como origem: Fort Lauderdale, Cleveland, cidades no estado de Nova York. Era material de coleta seletiva de shoppings, clínicas médicas, escolas e restaurantes. Também encontramos embalagens usadas na preparação dos alimentos, como caixas de pizza com resto de comida e outros tipos de alimentos”, afirma.
Nas imagens do material apreendido, foi possível identificar dois hospitais da Flórida por meio de etiquetas que estavam em embalagens jogadas no lixo: Broward General Medical Center, de Fort Lauderdale, e Cleveland Clinic Hospital, de Weston. Procuramos os dois hospitais, mas eles não se manifestaram.
A Smurfit Kappa do Brasil Indústria de Embalagens Bento Gonçalves foi a responsável pela importação. A empresa faz parte do grupo irlandês Smurfit Kappa, que é uma das principais empresas de embalagens de papel do mundo. Apuramos que a carga foi exportada pela Smurfit Kappa North America.
A empresa foi multada, e o Ministério Público Federal abriu investigação.
O procurador da República Daniel Luís Dalberto disse que um laudo identificou lixo doméstico e hospitalar na carga. A temperatura interna do contêiner estava mais alta que a ambiente, porque o material estava se decompondo e produzindo gás, como em um lixão.
Dalberto explica que foi feito acordo de não persecução penal no qual a empresa se comprometeu a pagar indenização de R$ 706 mil — usada para comprar uma câmera termal para a vigilância do porto — em troca de não ser processada criminalmente.
O procurador explicou que a Smurfit Kappa fez uma exigência para assinar o acordo: que o nome da empresa fosse mantido em sigilo. Ela alegou que teria sido vítima do exportador nos Estados Unidos, o que é no mínimo curioso, já que o exportador pertence ao mesmo grupo. Dalberto disse que é incomum esse tipo de exigência.
Reincidente em Santos
Cinco meses depois de assinar o acordo, em 4 de agosto de 2021, a Alfândega do Porto de Santos, em ação conjunta com o Ibama, apreendeu um contêiner importado pela Smurfit Kappa com 23,3 toneladas que deveria ser de aparas de papel, mas em meio ao material havia lixo, assim como se verificou naquele apreendido no Rio Grande do Sul no ano anterior.
O material foi despachado pela empresa GP Harmon Recycling LLC, de Jericho, no estado de Nova York. É uma subsidiária da Georgia-Pacific Recycling, que se declara uma das maiores recicladoras do mundo, com produção de 100 mil toneladas de resíduos recicláveis por semana.
Ivan Brasílico da Silva, chefe da Divisão de Vigilância e Repressão ao Contrabando e Descaminho da Alfândega no Porto de Santos, explica que a descoberta do lixo aconteceu durante o desembaraço aduaneiro.
“Durante a verificação física do desembaraço, foi suspeitado que a carga não era o que estava declarado. Estava declarada como aparas de papel, mas foi constatado que se tratava de lixo doméstico, inclusive materiais orgânicos, vivos”, lembra.
Máscaras usadas e até fraldas foram encontradas DIVULGAÇÃO/IBAMA
Segundo Silva, depois da primeira apreensão, foi feita uma pesquisa no sistema de análise de risco da Receita Federal, e o resultado foi a identificação de mais cargas suspeitas. “Foram analisadas imagens de mais de mil cargas, uma por uma. Este embarcador tinha cargas na Argentina, Uruguai, cargas similares. Chegamos a 56 contêineres que não tinham sido verificados. Aí foi acionado o Ibama. A gente interceptou os 56 contêineres e, destes, 50 tinham lixo”, explica.
Ana Angélica Albarce, chefe do Ibama em Santos na época das apreensões, disse que, ao ser acionado pela Receita Federal, o Ibama encontrou o lixo. ”No lugar de aparas de papelão, foram achados máscaras, plástico, tecidos, mochilas, latas de refrigerante”, lembra.
O material veio dos Estados Unidos, de Honduras e da República Dominicana. Os navios fizeram paradas nos portos do Panamá, da Jamaica e de Cartagena, na Colômbia.
“É um assunto muito delicado. O Brasil não é lixo do mundo”, desabafa Angélica.
A apreensão do contêiner de lixo importado pela Smurfit Kappa no porto de Santos foi a primeira de 11 apreensões que aconteceram em 2021 e totalizaram 2.100 toneladas de lixo que envolvem quatro empresas importadoras, todas da área de papéis e embalagens: Smurfit Kappa, I&M Papéis e Embalagens, Indústrias de Papéis Sudeste e Jaepel Papéis.
No total, foram encontrados 93 contêineres que trouxeram lixo doméstico e hospitalar para o Brasil; desses, 73 partiram dos portos de Boston, Charleston e Baltimore, na costa leste americana. Dez contêineres saíram do porto de Cortes, em Honduras, e outros dez foram despachados no porto de Caucedo, na República Dominicana.
Em nota, a Smurfit Kappa disse que “jamais importou lixo, e sim aparas de papelão, ou seja, caixas de papelão usadas que serão transformadas em uma nova caixa seguindo o nosso modelo de negócio circular. Adquirimos aparas de papelão de fornecedores externos, de acordo com a necessidade de graus especiais.
Seguindo as normas rigorosas do Grupo Smurfit Kappa e da legislação brasileira, a empresa, assim que tomou conhecimento da situação, empreendeu todos os esforços para a devolução dos referidos contêineres à sua origem, assim que autorizado pelas autoridades, e esse material encontrado jamais ingressou no território nacional.
Com a sustentabilidade no centro de suas operações, a Smurfit Kappa garante a Certificação pela Cadeia de Custódia FSC para as soluções de embalagens da companhia no Brasil. Essa certificação avalia todas as etapas do processo de produção da matéria-prima, desde a origem da fibra até o produto que chega aos consumidores finais”.
Sucata de baterias
Durante a nossa apuração, descobrimos que o lixo do vizinho Uruguai também é trazido ilegalmente para o país. De 2002 a 2022, foram registradas 85 apreensões de lixo do país vizinho, que despachou neste período 156 toneladas de sucata de baterias de carro e caminhão — material que contém chumbo e é altamente tóxico e nocivo — e 424 toneladas de lixo reciclável doméstico, como garrafas PET, plástico e papel.
As apreensões registradas pelo Ibama aconteceram em cidades perto da fronteira. Santana do Livramento, cidade que faz divisa com o Uruguai, registrou 65% das apreensões de sucata de baterias e 77% das apreensões de lixo doméstico.
Os importadores flagrados trazendo lixo ilegal são comerciantes de sucata, material reciclável, embalagens plásticas, baterias e pessoas físicas. O material vem pela estrada.
Em outubro de 2022, a Polícia Federal em Santana do Livramento deflagrou a Operação Fauda, que desarticulou esquema de contrabando de lixo e lavagem de dinheiro na fronteira com o Uruguai. Em maio de 2021, a Operação La Basura desarticulou uma organização criminosa especializada na importação ilegal de baterias do Uruguai. O grupo usava empresas de reciclagem para emitir notas fiscais para legalizar a importação.
A PF descobriu que o chumbo era reaproveitado, fundido e vendido para indústrias nacionais. Parte do material também era reformada e falsificada como baterias fabricadas no Brasil, que eram postas à venda no mercado.
O delegado da Polícia Federal Tiago Coutinho, responsável pela delegacia de Combate ao Crime Organizado em Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai, explicou que o contrabando de lixo segue o mesmo modus operandi dos outros produtos que são trazidos ilegalmente do país vizinho, tanto que o homem apontado como um dos maiores contrabandistas da fronteira foi alvo das operações Fauda e La Basura.
“Eles se aproveitam da facilidade da fronteira, onde não existe uma barreira física entre os dois países, para fazer um transbordo da carga através de caminhões brasileiros e uruguaios; se aproveitam dessa dinâmica da fronteira para que as fiscalizações brasileira e uruguaia não visualizem a transferência da mercadoria da sucata especificamente do Uruguai para o Brasil. Quando entra no Brasil, quando existe uma nota fiscal brasileira que regulariza formalmente aquela mercadoria, a fiscalização se torna ainda mais difícil”, explica Coutinho.
O esquema usava galpões de reciclagem no lado uruguaio, de onde caminhões buscavam o material e traziam para o lado brasileiro. Também traziam embalagens plásticas e garrafas PET usadas. Por meio da Operação Fauda, os agentes descobriram um esquema milionário de lavagem de dinheiro do tráfico de lixo que usava emissão de notas fiscais por empresa fictícia de transporte de sucata. Em um ano, foram movimentados mais de R$ 90 milhões.
A PF suspeita que exista conexão entre os grupos contrabandistas de lixo e os de tráfico de drogas e armas. Já há registros da apreensão de armas em meio ao lixo contrabandeado. O delegado diz que esses gupos são violentos e já mataram testemunhas que colaboraram com a polícia.
De acordo com o delegado, um dos investigados na Operação Fauda já foi alvo de mais de 20 inquéritos da polícia nos últimos dez anos. Ele aparece no topo do ranking das apreensões de sucata de baterias feitas pelo Ibama em Santana do Livramento. As ações conjuntas da PF com a Receita Federal e o Ibama levaram a Delegacia da Receita Federal de Santa Maria a separar um setor especial em um galpão, para onde são levadas as apreensões da Receita Federal na região.
Alexandre Zorzo Righes, chefe da Delegacia da Receita Federal em Santa Maria, explicou que as sucatas contrabandeadas costumam ir para empresas de baterias para recondicioná-las e vendê-las como novas. Também explicou que as sucatas plásticas que vêm do Uruguai vão para empresas de reciclagem.
Segundo Righes, a Receita teve que gastar dinheiro com um lugar especial para armazenar as baterias apreendidas por causa do risco ambiental e emprega muito dinheiro para dar a destinação do resíduo perigoso com a contratação de empresa especializada nesse tipo de descarte.
“Baterias são preocupantes porque têm líquidos, metais pesados poluentes. É um problema grande”, alerta.